O Mistério do Nimitta da Respiração ou
O Caso do Símile Desaparecido

Um ensaio sobre alguns aspectos da prática da meditação com a respiração

Por

Ajaan Sona

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INTRODUÇÃO

Como o título deste ensaio sugere, uma importante charada tem de ser solucionada por qualquer meditador ou estudioso que tentar entender de modo claro as qualidades da experiência que acompanham a transição da mera atenção na respiração até a completa imersão na consciência dos jhanas. Mostrarei que existem bons motivos para confusão a esse respeito quando alguém investiga a evolução histórica das descrições nos comentários, desde o Patisambhidamagga passando pelo Vimuttimagga até o (mais recente) Visuddhimagga.

Visto que o Visuddhimagga exerce tanta influência e é freqüentemente mencionado pelos mestres modernos, parece crítico que ele seja confiável, e se em alguns aspectos assim não for, então, com o respaldo de evidências, deve-se mostrar claramente porque não é.

O corpo deste ensaio irá mostrar que a descrição da mente de um meditador em jhana, encontrada no próprio Cânone e mencionada no Patisambhidamagga como um símile, envolvendo uma comparação da mente com uma nítida lua cheia, degenera para a literalidade dessa imagem como um fenômeno visual produzido internamente. Como não é fácil detalhar o conteúdo da mente, o Buda, freqüentemente, empregava símiles comparando objetos visuais e outros objetos sensuais com o conteúdo mental para que os meditadores pudessem entender com clareza o que eles deveriam estar buscando e experimentando. Nas diversas tradições religiosas, encontramos freqüentemente uma tendência ingênua para tomar literalmente aquilo que foi intencionado como um símile. Parece que isso ocorreu em alguma etapa do processo e acabou se tornando ‘santificado’ na descrição do patibhaganimitta ou “sinal de contrapartida” no Visuddhimagga. É importante que as novas gerações de meditadores ocidentais não sejam induzidos em erro por este provável erro histórico.

Os termos nimitta ou “sinal” e patibhaganimitta ou “sinal de contrapartida” são freqüentemente mencionados neste ensaio, e é melhor esclarecer o seu significado desde o início. O “sinal” significa uma marca característica ou fenômeno que acompanha e ajuda a identificar uma certa experiência. Por exemplo, a gripe é de modo freqüente acompanhada de fraqueza e náusea; nesse caso, a náusea seria um sinal da gripe. Extrema felicidade pode ser acompanhada por uma sensação de leveza do corpo e lágrimas; esses seriam sinais de felicidade. Um médico busca certos sinais que de modo típico acompanham certas enfermidades. Da mesma forma, certos sinais são característicos da entrada em estados profundos de concentração correta e são intrínsecos aos estados de jhana.

De acordo com as definições (tomadas dos Comentários) encontradas no Buddhist Dictionary do Ven. Nyanatiloka, existem três tipos de nimitta. O primeiro tipo é parikamma-nimitta, que se refere à percepção do objeto bem no início da concentração – este também é conhecido como “imagem ou sinal preparatório’. Quando a mente alcança um grau débil de concentração, surge uma imagem ou sinal ainda instável e não muito nítido chamado uggaha-nimitta ou “sinal adquirido”. Essa percepção antecede o surgimento de uma imagem totalmente clara e estável chamada patibhaga-nimitta ou “imagem de contrapartida” ou “sinal de contrapartida”. O surgimento desse terceiro tipo de nimitta indica o aparecimento da concentração de acesso, o estado que antecede a plena absorção do jhana. Ambos os estados compartem do mesmo sinal e diferem apenas na intensidade dos fatores que acompanham cada estado. E como mencionado na definição, o sinal de contrapartida é compreendido como uma versão mais refinada e nítida do sinal e é o resultado natural da atenção e concentração intensificadas. Conhecendo esses sinais, tanto o praticante como o mestre estarão aparelhados para avaliar o êxito ou fracasso das respectivas realizações na prática de concentração.

DISCUSSÃO

A atenção plena na respiração, (anapanasati), é um dos mais importantes objetos ou temas de meditação recomendados pelo Buda. E é também um dos métodos de meditação mais populares empregados pelas gerações atuais e passadas de praticantes do Budismo Theravada que buscam realizar o caminho completo para a libertação. Esse método é descrito em vários suttas que fazem parte do Cânone em Pali ( por exemplo o MN 118, MN 10, DN 22). No entanto, os suttas são bastante concisos e em alguns casos contêm poucos detalhes ao tratar dos métodos de meditação. Por conseguinte, encontramos que o principal objetivo da exegese pós-canônica é comentar, explicar, complementar ou esclarecer os textos do Cânone que possam ser considerados abstrusos ou carentes de informação.

Com relação ao tema da meditação da respiração, três dos comentários, o Visuddhimagga (Vis., 500 DC, 1a. edição em inglês em 1956), o Vimuttimagga (Vim., 100 DC ?, 1a. edição em inglês em 1961) e o Patisambhidamagga (Pat., 300 AC ?, 1a. edição em inglês em 1982) estão no momento disponíveis em traduções para o inglês. Tanto mestres como praticantes empregam-nos amplamente como referências valiosas para esclarecer aspectos chave da prática. Tradicionalmente, o Visuddhimagga, o trabalho mais recente dos três acima mencionados, tem sido usado e é considerado o padrão quiçá com mais autoridade a ser seguido como manual de meditação.

No que diz respeito ao sinal, (nimitta), e ao sinal de contrapartida, (patibhaganimitta), que surgem durante a meditação da respiração, há discrepâncias significativas entre o Visuddhimagga e o Vimuttimagga. Vários textos escritos por mestres contemporâneos mencionam as características do sinal e sinal de contrapartida surgindo durante a meditação da respiração. Freqüentemente, essas descrições tomam por base a clássica descrição do símile encontrada no Visuddhimagga, talvez como uma medida cautelosa visando não se afastar da ortodoxia. No entanto, como mostramos mais abaixo, essa descrição do sinal (adquirido ou contrapartida) pode se revelar muito enganadora e, como amiúde declarado por meditadores frustrados, obscura.

No Visuddhimagga a descrição da atenção plena na respiração (Vis.213-215, p.277), para. 213 diz o seguinte:

...Assim também, o bhikkhu não deveria procurar a inspiração e a expiração em nenhum outro lugar a não ser aquele normalmente tocado por elas. Ele deveria tomar a atenção plena como corda e o entendimento como aguilhada e fixar a mente no lugar normalmente tocado pela inspiração e expiração e prosseguir empenhando sua atenção nisso. Pois, agindo deste modo, a inspiração e a expiração reaparecerão depois de não muito tempo... E assim, ele poderá prendê-las com a corda da atenção plena, e, emparelhando-as no mesmo lugar e estimulando-as com a aguilhada do entendimento, ele se manterá empenhado no objeto de meditação.

214. Assim procedendo, o sinal [veja a nota correspondente no próximo parágrafo] em breve aparecerá para ele. Mas não é o mesmo sinal para todos; ao contrário, alguns dizem que quando ele aparece, assim o faz produzindo um toque suave como o do algodão ou da seda, ou como uma brisa suave.

215. Mas esta é a explicação dada nos comentários: o sinal aparece para alguns como uma estrela ou um punhado de pedras preciosas, ou como um punhado de pérolas, para outros como um toque áspero parecido com o das sementes de algodão ou de um pino feito de madeira, para outros como o de uma longa trança de fios ou de uma coroa de flores, ou uma baforada de fumaça, para outros como uma teia de aranha esticada ou como uma camada muito fina de nuvem, ou como uma flor de lótus, ou como uma roda de carruagem, ou como o disco lunar, ou como o disco solar. [sublinhado pelo autor]

Uma nota que consta do comentário ao Visuddhimagga diz o seguinte:

“O sinal” é o sinal adquirido e o sinal de contrapartida, pois ambos são aqui mencionados juntos. Os três símiles, começando com o do algodão, se referem ao sinal adquirido e os restantes a ambos. “Alguns” são certos mestres. Os símiles, a partir do “punhado de pedras preciosas”, se referem ao sinal de contrapartida. (Paramattha-manjusa, Visuddhimagga Atthakatha; Vism. p.786, n.58).

Os símiles que constam das seções anteriores (Vis.214-215) representam tanto percepções tácteis como visuais. Os trechos a seguir são apresentados para que o leitor avalie se ocorreu alguma confusão resultante de erro na transmissão, (talvez um erro na transcrição), baseada em dados obtidos dos comentários mais antigos, tais como do Vimuttimagga e do texto canônico Patisambhidamagga, ou por que foi tomado literalmente o que originalmente pretendia ser um símile.

O Vimuttimagga (p.68), ao mencionar o “discernimento das qualidades” dos diversos temas de meditação, afirma que “ ... um objeto de meditação agarra o sinal através do contato. A saber, a atenção plena na respiração. E novamente, um objeto de meditação agarra o sinal através da visão ou contato. A saber, a kasina do ar.” Esta distinção é crítica. Ela mostra que a meditação da respiração é distinta dos demais objetos de concentração por ser exclusivamente táctil.

Os objetos visuais podem ser percebidos por alguns meditadores durante a meditação da respiração como um efeito colateral, no entanto, o meditador deve permanecer focado exclusivamente na sensação táctil da respiração. Portanto, como mencionado no Patisambhidamagga (170., p.172):

... o bhikkhu senta, estabelecendo a atenção plena na ponta do nariz ou no lábio, sem acompanhar a inspiração e a expiração enquanto estas se aproximam e se afastam, ... o corpo e a cognição daquele que é energético [nesta tarefa] se torna maleável, ... os seus pensamentos aplicados silenciam .... [e] as suas tendências subjacentes são suprimidas ...

Voltando aos símiles do Visuddhimagga, mencionados acima (Vis.214-215), e comparando-os com aquilo que é encontrado nas descrições correspondentes no Vimuttimagga, (Atenção Plena na Respiração, pp.158-159; veja o parágrafo abaixo), é possível observar que eles são diametralmente opostos no significado aparentemente pretendido. Enquanto os símiles do Visuddhimagga são formulados referindo-se àquilo que poderá ser encontrado como sinal ao qual se deve dar atenção, no Vimuttimagga encontramos palavras de advertência para que nos abstenhamos de dar atenção a essas percepções, (ao invés de dar atenção ao sinal táctil da respiração). O trecho correspondente do Vimuttimagga está reproduzido na íntegra a seguir:

Para o iogue que se ocupa com a respiração com a mente purificada das nove contaminações, a imagem surge com uma sensação prazerosa semelhante àquela que é produzida na ação de fiar algodão ou seda. Também é comparada à sensação prazerosa produzida por uma brisa. Assim, ao inspirar e expirar o ar toca no nariz ou no lábio e causa o estabelecimento da atenção plena na percepção do ar. Isto não depende de cor ou forma e é chamado de imagem. Se o iogue desenvolver a imagem, [sinal], e aumentá-la na ponta do nariz, entre as sobrancelhas ou na testa, ou estabelecê-la em vários lugares, ele irá sentir como se a sua cabeça estivesse cheia de ar. Incrementando a imagem desse modo, todo o seu corpo irá se permear com o prazer. Isso é chamado de perfeição.

Novamente, para um outro iogue: ele vê várias imagens desde o princípio. Ele vê várias formas, tais como fumaça, névoa, poeira, ouro pulverizado ou ele experimenta algo semelhante à picada de uma agulha ou à mordida de uma formiga. Se a sua mente não tiver um claro entendimento dessas diferentes imagens, ele ficará confuso[!]. E assim ele obterá algo oposto à percepção da respiração. Se a sua mente estiver purificada, o iogue não experimentará a confusão. Ele se ocupará com a respiração e não causará o surgimento de outras percepções [sublinhado pelo autor]. Meditando desse modo ele será capaz de dar um fim à confusão e obter a imagem, [sinal], sutil. Ele estará atento à respiração com a mente livre. E a imagem, [sinal], estará livre. E pelo fato da imagem, [sinal], estar livre, o desejo surgirá. Com o desejo livre, este iogue estará atento à respiração com equanimidade. Com a equanimidade, o desejo e o prazer livres, ele estará atento à respiração e a sua mente não será perturbada. Se a sua mente não estiver perturbada, ele destruirá os obstáculos e estimulará o surgimento dos fatores de jhana. Assim, este iogue alcançará o calmo e sublime quarto jhana. É dessa forma ampla que foi ensinado acima.

O alerta para não ficar distraído pode ter sido obtido diretamente do discurso da Atenção Plena na Respiração (Anapanasati Sutta MN 118.26): “Eu não digo que possa existir desenvolvimento da atenção plena para aquele que é esquecido e desprovido de plena consciência.”

A frase “sensação prazerosa semelhante àquela que é produzida na ação de fiar algodão ou seda” deve ser compreendida como a sensação táctil prazerosa experimentada num certo ponto da mão pelo fiador que segura e direciona e ao mesmo tempo fia um fio de algodão. A interpretação do símile dessa forma é apropriada no sentido de que o contato inicial com o fio é sentido como áspero e depois de algum tempo muda a sua característica (dormência, pressão, calor, etc.) para uma qualidade de percepção distinta pelo efeito da fricção contínua. Este é um símile mais refinado do que aquele encontrado no Visudhimagga, que se contenta com a imagem estática do “toque do algodão.”

A frase “isto não depende de cor ou forma” deixa bem claro que o meditador não deve esperar que o sinal da atenção plena na respiração seja uma imagem visual, visto que não é possível conceber uma percepção visual que não tenha cor e forma. O que pode ser inferido dessa frase é que o sinal é uma percepção táctil. A propósito, no Patisambhidamagga, o tratado sobre a respiração mais antigo e mais abrangente, não há nenhuma menção ao longo de toda a seção sobre a meditação da respiração de um nimitta visual ou de uma “luz”.

Um grande mistério é solucionado quando compreendemos que a maioria das imagens atribuídas ao sinal de contrapartida no Visuddhimagga e às “distrações “ no Vimuttimagga, são encontradas no mais antigo Patisambhidamagga, como parte de uma descrição metafórica de um bhikkhu liberto das impurezas, por conta da sua distinção na prática da meditação da respiração. As descrições seguem abaixo:

Aquele cuja atenção plena na respiração é perfeita, bem desenvolvida e gradualmente conduzida à sua maturação de acordo com o que foi ensinado pelo Buda, é que ilumina o mundo tal qual a lua cheia livre de nuvens (Pat.III, 171, p.172). E,

Tal qual a lua cheia livre de nuvens: as impurezas são como as nuvens, o conhecimento dos nobres é como a lua, o bhikkhu é como o filho da divindade que possui a lua cheia. Tal qual a lua que quando liberta das nuvens, liberta da névoa, liberta da fumaça e da poeira, liberta das garras do Demônio do Eclipse Rahu, brilha, cintila e resplandece, assim também o bhikkhu que está liberto de todas as impurezas brilha, cintila e resplandece. Por conseguinte, foi dito “Tal qual a lua cheia livre de nuvens” (Pat.III, 182, p.175). [sublinhado pelo autor]

Aqui, o que num texto do Cânone é dado como um símile para a mente, no Vimuttimagga é tomado literalmente, ainda que corretamente, como percepções visuais, como imagens às quais não se deve dar atenção. O Visuddhimagga, no entanto, se equivoca duas vezes tomando os símiles “fumaça”, “névoa”, “poeira”, “brilho”, “cintilante”, “resplandecente”, e “lua” como imagens visuais no sentido literal, e também ao caracterizá-los como sinal de contrapartida, um indicador do sucesso [!], em oposição direta ao Vimuttimagga.

Resta-nos somente perguntar como essas imagens metafóricas, encontradas no final do capítulo, que descreve a meditação da respiração no Patisambhidamagga, acabaram por fim se convertendo em eventos visuais literais relacionados à prática de meditação nos comentários posteriores. Dada a evidência apresentada neste ensaio, é aconselhável considerar ambos, o Vimuttimagga e o Patisambhidamagga, como textos mais confiáveis no que diz respeito à meditação da respiração.

Somente no Patisambhidamagga o material é tratado de modo apropriado. Os símiles para a qualidade da mente, como “clara”, “iluminada” ou “livre de nuvens”, são tratados como símiles, e além disso as imagens dos símiles “nuvens”, “névoa”, etc., são entendidas de forma correta como impedimentos para aquela claridade. O editor, (de acordo com a tradição Acariya Buddhaghosa), do Visuddhimagga demostra na verdade um certo desconforto com a “diversidade de percepções” dos vários nimittas para a meditação da respiração e demonstra esse desconforto explicando que tal diversidade se origina da mera diferença de percepção entre os meditadores, (veja a citação no próximo parágrafo). Nem essa explicação e tampouco a necessidade de formulá-la aparecem nos comentários mais antigos.

216. Na verdade, isso se assemelha a uma ocasião em que muitos bhikkhus estão sentados juntos recitando um sutta e um bhikkhu pergunta, “Com o que se parece este sutta para você?”, um diz, “Para mim ele se parece com uma grande enxurrada montanha abaixo,” outro diz,“Para mim, com um grupo de árvores na floresta,” ainda um outro diz, “Para mim, ele é como a sombra fresca de uma frondosa árvore frutífera.” Pois o mesmo sutta tem uma aparência distinta para cada um devido à diferença de percepção de cada um. Assim também, este único objeto de meditação aparece de modo diferente devido à diferença entre as percepções. Essa diferença é nascida da percepção, a sua fonte é a percepção, ela é produzida pela percepção. Por conseguinte, deve ser compreendido que quando a aparência é distinta, é devido à diferença entre as percepções. (Vis. VIII, 216, p.278).

Tenho certeza que muitos meditadores já se perguntaram porque o Buda deixou de mencionar a informação essencial acerca do “sinal” e do “sinal de contrapartida” na meditação da respiração, que o Visuddhimagga considera ser tão essencial para o êxito da prática dos jhanas. Espero que este ensaio demostre que a descrição do Buda para a prática da meditação da respiração contém toda a informação necessária e suficiente para o sucesso dessa prática.

Eu adicionaria que o único sinal de jhana confiável, e que se aplica a todos os casos, é a descrição dos fatores de jhana dada pelo próprio Buda, quer o objeto de meditação seja visual ou táctil. Além disso, espero que o meditador compreenda que a clareza e o refinamento progressivo da sua percepção do objeto de meditação são simplesmente os “efeitos colaterais” da clareza e luminosidade da mente tranqüila e focada.

Por fim, gostaria de enfatizar que o objeto da meditação da respiração é o contato com o ar. A qualidade do elemento ar é de importância crítica nesta meditação. Se o Buda estivesse interessado na mera sensação proveniente do contato, então seria mais simples tocar o nariz com os dedos. Tomar a leveza do ar como uma experiência corporal é crítico. Como o Vimuttimagga diz:

Ele irá sentir como se a sua cabeça estivesse cheia de ar. Com o aumento dessa sensação, o seu corpo irá se permear com o prazer. Isso é chamado de perfeição. [mencionado acima].

LOCALIZAÇÃO, LOCALIZAÇÃO, LOCALIZAÇÃO: UM PEQUENO ASSUNTO PERTINENTE

Um assunto secundário, pertinente, em relação ao nimitta da respiração é, uma vez mais, um mal entendido visível que evoluiu para a sua forma final no Visuddhimagga.

Esta frase crítica é empregada no Satipatthana Sutta e no Anapanasati Sutta: “parimukham satim upatthapetva,” que tem sido traduzida como “estabelece a atenção plena à sua frente.” Ficamos nos perguntando porque o Patisambhidamagga, o Vimuttimagga e o Visudhimagga todos com muita segurança dão a localização do contato da respiração nas narinas. Além disso, encontramos nessas três obras: “quer seja no nariz ou no lábio.” E nesse caso, Buddhaghosa, o editor, dá uma explicação que “uma pessoa com a nariz comprido sente a respiração nas narinas à medida que o ar passa pelo nariz. Uma pessoa com um nariz pequeno no entanto, sente o ar no lábio superior.” Isso também soa estranho se pensarmos um pouco a respeito, porque se uma pessoa tiver um “nariz pequeno”, ela será capaz de sentir somente a exalação de ar quente saindo das narinas para o lábio superior. Toda a inspiração terá sido perdida. Portanto, parece que temos mais uma charada.

Se olharmos para a palavra “mukha”, no sutta original, significa, literalmente, “entrada” ou “boca.” Se aplicarmos este significado óbvio teremos: “Ele estabelece a atenção plena na entrada”, sendo que a entrada é ou o nariz ou a boca. Os antigos comentaristas estão pressupondo que o leitor entende que o meditador poderá estar respirando ou pela boca ou pelo nariz. Se ele estiver respirando através da boca deverá dirigir a atenção para o contato do ar com o lábio. Na verdade, é um conselho bastante sensato, pois seria uma lástima ter que abandonar a meditação da respiração só por causa de um resfriado ou porque o nariz está entupido! Portanto, podemos ver que aquilo que começou como uma descomplicada localização do contato com a respiração no nariz ou na boca, isto é, “na entrada”, pouco a pouco assumiu a confusa adição de “uma pessoa com o nariz comprido ou pequeno.” O debate sobre o significado desta frase começou muito cedo (veja abaixo a citação da nota original no Patisambhidamagga) e na verdade todos os três comentários optaram por mukha como sendo nariz ou boca.

“Tem o sentido de abraçar”, está com o sentido de ser abraçado. O que é abraçado? A saída. Qual saída? A concentração baseada na atenção plena na respiração é em si mesma a saída direta até o caminho do arahant. Daí, a frase “tem o sentido de saída.” O significado de “saída do ciclo de renascimentos” é expresso através do significado da palavra mukha, (boca), como principal, (frente). “Tem o sentido de fundação”, está com o sentido de essência individual. O significado expresso por todas essas palavras é: fez da atenção plena uma saída abraçada. Mas alguns dizem que “tem o sentido de abraçar” significa “abraçar com o sentido de atenção plena,” e que “tem o sentido de saída” significa “porta de entrada e saída significando a inspiração e a expiração.” Então, o significado pretendido é: Estabeleceu a atenção plena como a saída abraçada das inspirações e expirações. (Nota 14, Edição em Inglês; PsA 350-1)

Alguns mestres modernos têm sugerido que não importa onde o contato com a respiração esteja localizado, provavelmente em resposta à frase que ocorre mais tarde no sutta: “Eu inspiro experienciando todo o corpo ...”, etc. E visto que o corpo da respiração não está mencionado de forma explícita, eles sentem que há espaço para interpretação. Mas a respiração como um “corpo” é mencionada de modo explícito no Anapanasati Sutta, embora não no Satipatthana Sutta, e o significado da frase é o mesmo: “Eu digo que esse é um corpo entre os corpos, ou seja, a inspiração e a expiração” (Anapanasati Sutta, MN 118.24; a nota diz que “Inspiração e expiração devem ser consideradas ... entre os fenômenos corporais uma vez que o objeto da atenção é a sensação do toque da respiração entrando e saindo das narinas”). Há também uma localização explícita da “entrada” neste sutta, com o que os três comentários estão de acordo, qualquer que seja a confusão que tenha surgido mais tarde. Ela também ignora o símile que vem em seguida à localização explícita, isto é, “Da mesma forma como um torneiro habilidoso ou seu aprendiz, quando faz uma volta longa, compreende: ‘Eu faço uma volta longa’; ou, quando faz uma volta curta, compreende: ‘Eu faço uma volta curta’; assim também, inspirando longo, um Bhikkhu compreende: ‘Eu inspiro longo’...ele treina dessa forma: ‘Eu expiro tranqüilizando a formação do corpo.’” (Satipatthana Sutta, MN10.4). O Buda incluiu este símile aparentemente redundante por uma razão. Símiles são como retratos, valem por mil palavras e em geral sobrevivem à carnificina das traduções. Este é o mecanismo de segurança do Buda para mostrar que assim como um torneiro fixa a sua atenção num só ponto com o cinzel enquanto o torno está em constante movimento, o meditador faz o mesmo no “ponto de entrada” enquanto a respiração segue fluindo continuamente. Basicamente, todos os comentários lograram preservar essa noção do “símile da serra”, mas infelizmente a boca como localização foi descuidada na época do Visuddhimagga.

Tudo isso não quer dizer que existe apenas uma forma de alcançar a tranqüilidade usando a respiração. Se alguém desenvolveu uma técnica que resulta em jhana, e que não segue as instruções explícitas, está bem. O que quer que funcione vale.

RESUMO

A seguir, um breve resumo de instruções para os meditadores que praticam a meditação da atenção plena na respiração:

  • Coloque a atenção na sensação da respiração/ar onde quer que ela entre e saia do corpo.
  • Se surgirem percepções visuais, ignore-as.
  • Não permita que a mente vagueie. Regresse para o ponto de contato da respiração.
  • Mantenha a atenção naquele ponto ao longo de toda a duração da inspiração e expiração.
  • A sensação, ou percepção, do ar se movendo irá mudar para uma sensação estática, esse é um sinal da mente se acalmando.
  • Permaneça com essa qualidade aérea, flutuante, que deve permear toda a cabeça. Experimente um frescor e um vazio aéreo na cabeça. Essa percepção poderá se estender por todo o corpo. Este é mais um sinal de crescente tranqüilidade.
  • Permaneça com essa leveza aérea focando nessa experiência.
  • Todos os obstáculos deverão ter desaparecido e os cinco fatores de jhana estarão presentes num grau que poderá ser fraco, médio ou forte.
  • Use o Anapanasati Sutta para mais instruções.

Eu espero que os pontos acima ajudem a esclarecer as possíveis confusões enfrentadas pelos meditadores e que eles possam respirar aliviados à medida que progredirem ao longo do caminho.

 


 

Referências:

1) “The Path of Purification, Visuddhimagga” por Bhadantacariya Buddhaghosa, traduzido do Pali por Bhikkhu Nyanamoli, 5th ed. Buddhist Publication Society, Kandy, Sri Lanka. (1991)

2) “The Path of Freedom, Vimuttimagga” por Arahant Upatissa, traduzido do Chinês por Rev. N.R.M. Ehara, Soma Thera e Kheminda Thera; Buddhist Publication Society, Kandy, Sri Lanka (1995)

3) “The Path of Discrimination, Patisambhidamagga” traduzido do Pali por Bhikkhu Nyanamoli, 2nd ed. The Pali Text Society, Oxford (1997).

 

 

Revisado: 5 Junho 2004

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