Digha Nikaya 9

Potthapada Sutta

Estados de Consciência

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1. Assim ouvi. Em certa ocasião o Abençoado estava em Savathi no Bosque de Jeta, no Parque de Anathapindika. Naquela ocasião o errante Potthapada estava no salão de debates próximo à árvore Tinduka, no parque da rainha Mallika, [1] com um grande grupo de cerca de trezentos errantes.

2. Então, ao amanhecer, o Abençoado se vestiu e tomando a tigela e o manto externo foi para Savathi para esmolar alimentos. Mas ele pensou o seguinte: “Ainda é muito cedo para ir até Savathi para esmolar alimentos. E se eu fosse até o salão de debates para ver o errante Potthapada?” E assim ele fez.

3. Lá estava Potthapada com uma grande assembléia de errantes que estavam fazendo uma grande baderna, conversando em voz alta e aos berros sobre muitos assuntos inúteis, tal como falar sobre reis, ladrões, ministros de estado, exércitos, alarmes e batalhas; comida e bebida, roupas, mobília, ornamentos e perfumes, parentes; veículos; vilarejos, vilas, cidades, o campo; mulheres e heróis; as fofocas das ruas e do poço; contos dos mortos; contos da diversidade (discussões filosóficas do passado e futuro), a criação do mundo e do mar e falar sobre a existência ou não das coisas.

4. Então Potthapada viu o Abençoado chegando à distância. Ao vê-lo, ele silenciou a assembléia dizendo o seguinte: “Senhores, fiquem quietos; senhores, não façam ruído. Ali vem o contemplativo Gotama. Esse venerável gosta do silêncio e recomenda o silêncio. Talvez, se ele encontrar a nossa assembléia em silêncio, pensará em juntar-se a nós.” Então os errantes ficaram em silêncio.

5. O Abençoado foi até Potthapada, que lhe disse: “Venha venerável senhor! Bem vindo venerável senhor! Já faz muito tempo desde que o venerável senhor encontrou uma oportunidade para vir aqui. Que o venerável senhor sente; este assento está preparado.”

O Abençoado sentou no assento que havia sido preparado e Potthapada sentou a um lado, num assento mais baixo. O Abençoado disse: “Qual é o assunto que faz com que vocês estejam sentados juntos aqui agora, Potthapada? E qual é a discussão que foi interrompida?”

6. “Venerável Senhor, deixemos de lado a discussão pela qual estamos aqui sentados juntos. O Abençoado poderá ouvi-la mais tarde. Nos últimos dias, venerável senhor, a discussão entre os contemplativos e brâmanes de várias seitas que se reúnem no salão de debates diz respeito à cessação última da percepção, [2] e como esta ocorre. Alguns disseram: ‘As percepções de uma pessoa surgem e cessam sem causa e condição. Quando elas surgem, a pessoa está perceptiva, quando elas cessam, então ela está não perceptiva.’ Assim é como eles explicaram. Mas um outro grupo disse: ‘Não, não é assim. As percepções [3] são o eu de uma pessoa, que vêm e vão. Quando vêm, ela está perceptiva, quando vão, ela está não perceptiva.’ Um outro disse: ‘Não é assim. Existem contemplativos e brâmanes com grandes poderes, com grande influência. Eles empurram a percepção para dentro da pessoa e a retiram. Quando eles a empurram, ela está perceptiva, quando eles a retiram, ela está não perceptiva.’ [4] E um outro disse: ‘Não, não é assim. Existem divindades com grandes poderes, com grande influência. Elas empurram a percepção para dentro da pessoa e a retiram. Quando elas a empurram, a pessoa está perceptiva, quando elas a retiram, a pessoa está não perceptiva.’ Foi com relação a isso que lembrei do venerável senhor: ‘Ah, o Abençoado! Ah, o Iluminado! Que com certeza tem grande habilidade [5] nesse tipo de questões. O Abençoado tem grande habilidade na cessação última da percepção.’ O que então, venerável senhor, é a cessação última da percepção?”

7. “Com relação a isso, Potthapada, aqueles contemplativos e brâmanes que dizem que as percepções de uma pessoa surgem e cessam sem causa e condição estão completamente errados. Por que isso? As percepções de uma pessoa surgem e cessam devido a causas e condições. Algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento. O que é esse treinamento? Potthapada, um Tathagata surge no mundo, um arahant , perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime. Ele declara - tendo realizado por si próprio com o conhecimento direto - este mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo. Ele ensina o Dhamma, com o significado e fraseado corretos, que é admirável no início, admirável no meio, admirável no final; e ele revela uma vida santa que é completamente perfeita e imaculada. Um discípulo segue a vida santa e pratica a virtude (Veja o DN 2, versos 41-62). Isso para ele é a virtude.

8. “E então, Potthapada, aquele bhikkhu que tem a virtude consumada não vê perigo em lugar nenhum ... (Veja o DN 2, verso 63) ... Assim é como um bhikkhu é consumado em virtude.

9-10. “Ao ver uma forma com o olho, um bhikkhu não se agarra aos seus sinais ou detalhes ... (veja o DN 2, versos 64-75). Tendo alcançado o primeiro jhana ele permanece nele. E a percepção dos sentidos que ele tinha antes cessa e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção de êxtase e felicidade nascidos do afastamento. [7] Nessa ocasião ele está perceptivo a esse verdadeiro e refinado êxtase e felicidade. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

11. “E depois, abandonando o pensamento aplicado e sustentado, um bhikkhu entra e permanece no segundo jhana, que é caracterizado pela segurança interna e perfeita unicidade da mente, sem o pensamento aplicado e sustentado, com o êxtase e felicidade nascidos da concentração. A sua verdadeira e refinada percepção de êxtase e felicidade anterior, nascida do afastamento, cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção de êxtase e felicidade nascidos da concentração. Nessa ocasião ele está perceptivo a esse verdadeiro e refinado êxtase e felicidade. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

12. “E depois, abandonando o êxtase, um bhikkhu entra e permanece no terceiro jhana que é caracterizado pela felicidade sem o êxtase, acompanhada pela atenção plena, plena consciência e equanimidade, acerca do qual os nobres declaram: ‘Ele permanece numa estada feliz, equânime e plenamente atento.’ A sua verdadeira e refinada percepção de êxtase e felicidade anterior, nascida da concentração, cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção de equanimidade. Nessa ocasião ele está perceptivo a essa verdadeira e refinada equanimidade. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

13. “E depois, com o completo desaparecimento da felicidade, um bhikkhu entra e permanece no quarto jhana, que possui nem felicidade nem sofrimento, com a atenção plena e a equanimidade purificadas. A sua verdadeira e refinada percepção de equanimidade anterior cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção da atenção plena e a equanimidade purificadas. Nessa ocasião ele está perceptivo a essa verdadeira e refinada atenção plena e equanimidade purificadas. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

14. “E depois, com a completa superação das percepções da forma, com o desaparecimento das percepções do contato sensorial, sem dar atenção às percepções da diversidade, consciente de que o ‘espaço é infinito,’ ele entra e permanece na base do espaço infinito. A sua verdadeira e refinada percepção da atenção plena e a equanimidade purificadas anterior cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção da dimensão do espaço infinito. Nessa ocasião ele está perceptivo a essa verdadeira e refinada dimensão do espaço infinito. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

15. “E depois, com a completa superação da base do espaço infinito, consciente de que a ‘consciência é infinita,’ ele entra e permanece na base da consciência infinita. A sua verdadeira e refinada percepção da dimensão do espaço infinito cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção da dimensão da consciência infinita. Nessa ocasião ele está perceptivo a essa verdadeira e refinada dimensão da consciência infinita. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento.

16. “E depois, com a completa superação da base da consciência infinita, consciente de que ‘não há nada,’ ele entra e permanece na base do nada. A sua verdadeira e refinada percepção da dimensão da consciência infinita cessa, e nesse momento está presente a verdadeira e refinada percepção da dimensão do nada. Nessa ocasião ele está perceptivo a essa verdadeira e refinada dimensão do nada. Dessa forma algumas percepções surgem através do treinamento e algumas cessam através do treinamento. [8]

17. “Potthapada, a partir do momento em que um bhikkhu alcançou esse controle da percepção, [9] ele prossegue através de passos atentos sucessivos até que alcance o pico da percepção. Quando ele alcança o pico da percepção o pensamento lhe ocorre: ‘Pensar é ruim para mim, não pensar é melhor. Se eu pensar e querer, essa percepção cessaria, e uma percepção mais grosseira surgiria. E se eu não pensasse nem quisesse?’ [10] Assim ele não pensa nem quer, e enquanto ele não pensa nem quer, aquela percepção cessa e outra percepção grosseira não surge. Ele alcança a cessação. E assim, Potthapada, é a forma como ocorre através de passos atentos sucessivos a realização da cessação última da percepção.

18. “O que você pensa Potthapada? Você já havia ouvido isso antes?” “Não, venerável senhor. Como eu entendo, o Abençoado disse: ‘Potthapada, a partir do momento em que um bhikkhu alcançou esse controle da percepção, ele prossegue através de passos atentos sucessivos até que alcance o pico da percepção … Ele alcança a cessação… E assim é a forma como ocorre através de passos atentos sucessivos a realização da cessação última da percepção.’” “Isso é correto, Potthapada.”

19. “Mas venerável senhor, o Abençoado descreve apenas um pico da percepção ou vários?”
“Eu descrevo um e vários picos da percepção.”
“E como o Abençoado descreve um e vários?”
“De acordo com o modo como ele alcança a cessação, Potthapada, desse modo eu descrevo o pico da percepção. [11] Assim é como descrevo um pico da percepção e vários picos da percepção.”

20. “Agora, venerável senhor, a percepção surge primeiro e o conhecimento depois, ou o conhecimento surge primeiro e a percepção depois, ou a percepção e o conhecimento surgem simultaneamente?”
“Potthapada, a percepção surge primeiro, depois o conhecimento. E o surgimento do conhecimento ocorre do surgimento da percepção. Ele compreende que: ‘É na dependência disso [12] que surgiu o meu conhecimento.’ Dessa forma é possível ver que a percepção surge primeiro, e o conhecimento depois, e o surgimento do conhecimento ocorre do surgimento da percepção.”

21. “Agora, venerável senhor, a percepção é o eu da pessoa, ou a percepção é uma coisa e o eu outra?”
“Bem, Potthapada, qual eu você afirma?”
“Senhor, eu afirmo um eu grosseiro, possuído de forma, composto dos quatro elementos e que se alimenta de comida.”
“Mas com tal eu grosseiro, Potthapada, então para você a percepção seria uma coisa e o eu outra. Você pode ver isso da seguinte forma: mesmo enquanto esse eu grosseiro permanece, algumas percepções surgem e outras desaparecem. Assim você pode ver que a percepção tem que ser uma coisa, o eu outra. [13]

22. “Então, venerável senhor, eu afirmo um eu feito pela mente, completo com todas as suas partes, sem defeito em nenhuma das faculdades.” [14]
“Mas com tal eu feito pela mente, Potthapada, então para você a percepção seria uma coisa e o eu outra. Você pode ver isso da seguinte forma: mesmo enquanto esse eu feito pela mente permanece, algumas percepções surgem e outras desaparecem. Assim você pode ver que a percepção tem que ser uma coisa, o eu outra.”

23. “Venerável senhor, eu afirmo um eu sem forma feito de percepção.” [15]
“Mas com tal eu sem forma feito de percepção, Potthapada, então para você a percepção seria uma coisa e o eu outra. Você pode ver isso da seguinte forma: mesmo enquanto esse eu sem forma feito de percepções permanece, algumas percepções surgem e outras desaparecem. Assim você pode ver que a percepção tem que ser uma coisa, o eu outra.”

24. “Mas venerável senhor, é possível que eu saiba se a percepção é o eu de uma pessoa, ou se a percepção é uma coisa e o eu outra?”
“Potthapada, é difícil para alguém que possua outras idéias, aceita outros ensinamentos, aprova outros ensinamentos, dedicando-se a um outro treinamento e seguindo um outro mestre saber se a percepção é o eu de uma pessoa, ou se a percepção é uma coisa e o eu outra.”

25. “Bem, venerável senhor, se essa questão do eu e da percepção é difícil para alguém como eu - diga-me: O mundo é eterno? [16] Somente isso é verdadeiro e todo o restante é falso?”
“Potthapada, eu não declarei que o mundo é eterno e que todo o restante é falso.”
“Bem, venerável senhor, o mundo não é eterno?”
“Eu não declarei que o mundo não é eterno ...”
“Bem, venerável senhor, o mundo é infinito ... é finito? ...”
“Eu não declarei que o mundo é finito e que todo o restante é falso.”

26. “Bem, venerável senhor, a alma é a mesma coisa que o corpo ... a alma é uma coisa e o corpo outra?”
“Eu não declarei que a alma é uma coisa e o corpo outra.”

27. “Bem, venerável senhor, o Tathagata existe após a morte? Somente isso é verdadeiro e todo o restante é falso?”
“Eu não declarei que o Tathagata existe após a morte ...”
“Bem, venerável senhor, o Tathagata não existe após a morte ... ambos existe e não existe após a morte? ... nem existe, nem não existe após a morte?”
“Eu não declarei que o Tathagata nem existe, nem não existe após a morte, e que todo o restante é falso.”

28. “Mas, venerável senhor, por que o Abençoado não declarou essas coisas?”
“Potthapada, essas coisas não trazem beneficio, não pertencem aos fundamentos da vida santa, não conduzem ao desencantamento, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana. É por isso que eu não declarei isso.”

29. “Mas, venerável senhor, o que o Abençoado declarou?”
“Potthapada, eu declarei: ‘Isto é o sofrimento, esta é a origem do sofrimento, esta é a cessação do sofrimento e este é o caminho que conduz à cessação do sofrimento.’”

30. “Mas, venerável senhor, por que o Abençoado declarou isso?”
“Porque Potthapada, isso traz benefício, pertence aos fundamentos da vida santa, conduz ao desencantamento, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana. É por isso que eu declarei isso.”

“Assim é, venerável senhor, assim é, Abençoado. E agora é o momento para que o Abençoado faça o que for mais apropriado.” Então o Abençoado levantou do seu assento e partiu.

31. Então os errantes, assim que o Abençoado partiu, censuraram, zombaram e mofaram Potthapada de todas as formas, dizendo: “Tudo que o contemplativo Gotama diz, Potthapada concorda com ele: ‘Assim é, venerável senhor, assim é, Abençoado!’ Nós não entendemos uma palavra em todo o discurso do contemplativo Gotama: ‘O mundo é eterno ou não? - É finito ou infinito? - A alma é a mesma coisa que o corpo ou diferente? - O Tathagata existe após a morte ou não, ou ambos, ou nenhuma delas?’”

Potthapada respondeu: “Eu também não entendo se o mundo é eterno ou não ... ou se o Tathagata existe após a morte ou não, ou ambos, ou nenhuma delas. Mas o contemplativo Gotama ensina uma forma de prática real e verdadeira que está de acordo com o Dhamma e fundamentada no Dhamma. E por que um homem como eu não deveria expressar aprovação por uma prática real e verdadeira como essa, tão bem ensinada pelo contemplativo Gotama?”

32. Dois ou três dias depois, Citta, o filho do treinador de elefantes, foi com Potthapada ver o Abençoado. Citta homenageou o Abençoado e sentou a um lado. Potthapada cumprimentou o Abençoado, sentou a um lado e contou o que aconteceu.

33. “Potthapada, todos esses errantes são cegos e sem visão, você é o único entre eles que possui visão. Algumas coisas eu ensinei e apontei, Potthapada, como sendo definidas, outras como sendo indefinidas. Quais coisas apontei como indefinidas? ‘O mundo é eterno’ declarei como sendo indefinido ...’ O Tathagata existe após a morte ...’ Por que? Porque elas não trazem benefício ... a Nibbana. É por isso que eu as declarei como indefinidas.

“Mas, quais coisas eu apontei como definidas? ‘Isto é sofrimento, esta é a origem do sofrimento, esta é a cessação do sofrimento e este é o caminho que conduz à cessação do sofrimento.’ Por que? Porque elas trazem benefício, pertencem aos fundamentos da vida santa, conduzem ao desencantamento, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana. É por isso que eu as declarei como definidas.

34. “Potthapada, há alguns contemplativos e brâmanes que declaram e acreditam que após a morte o eu fica completamente feliz e livre de enfermidades. Eu fui até eles e perguntei se de fato era isso que eles declaravam e acreditavam, e eles responderam: ‘Sim.’ Então eu disse: ‘Vocês, amigos, vivendo no mundo, o conhecem e vêm como um lugar plenamente feliz?’ E eles responderam: ‘Não’. Eu disse: ‘Vocês já experimentaram uma noite ou dia ou metade de uma noite ou dia que fosse, completamente feliz?’ e eles responderam: ‘Não.’ Eu disse: ‘Vocês conhecem um caminho ou uma prática através da qual um mundo completamente feliz possa ser produzido?’ e eles responderam: ‘Não.’ Eu disse: ‘Vocês ouviram as vozes de divindades que renasceram num mundo completamente feliz, dizendo: “Pratiquem bem, estimados senhores. Pratiquem com diligência, estimados senhores, para alcançar um mundo completamente feliz, porque foi através dessa prática que nós mesmos renascemos neste mundo completamente feliz”?’ e eles responderam: ‘Não.’ O que você pensa Potthapada? Sendo esse o caso, a conversa daqueles contemplativos e brâmanes não seriam apenas tolices?” “Sim, venerável senhor, sendo esse o caso, a conversa daqueles contemplativos e brâmanes seriam apenas tolices.”

35. “É o mesmo que se um homem dissesse: ‘Eu estou apaixonado pela moça mais bonita deste pais.’ Então lhe perguntariam: ‘Bom homem, essa moça mais bonita deste pais pela qual você está apaixonado – você sabe se ela é da classe nobre ou da classe dos brâmanes ou da classe dos comerciantes ou da classe dos trabalhadores?’ e ele responderia: ‘Não.’ Então lhe perguntariam: ‘Bom homem, essa moça mais bonita deste pais com a qual você está apaixonado – você sabe o nome e o clã dela? ... Se ela é alta ou baixa ou com estatura média?... Se ela tem a complexão escura, clara ou dourada?... Em qual vilarejo, vila ou cidade ela vive?’ e ele responderia: ‘Não.’ E então lhe perguntariam: ‘Bom homem, você então está apaixonado por uma moça que você nem conhece ou viu?’ e ele responderia: ‘Sim.’ O que você pensa, Potthapada, em sendo assim, a conversa daquele homem não seria apenas tolice?” “Sim, venerável senhor, a conversa ... apenas tolice.”

36. “E assim também é com esses contemplativos e brâmanes que declaram e acreditam que após a morte o eu fica completamente feliz e livre de enfermidades ... a conversa daqueles contemplativos e brâmanes não seriam apenas tolices?” - “Sim, venerável senhor, sendo ... apenas tolices.”

37. “É como se um homem fosse construir uma escadaria para um palácio numa encruzilhada. As pessoas poderiam dizer: ‘Essa escadaria para o palácio – você sabe se a frente do palácio estará para o leste ou oeste, norte ou sul ou se o palácio será alto, baixo ou médio?’ e ele diria: ‘Não.’ E elas poderiam dizer: ‘Bem então, você não sabe ou imagina para que tipo de palácio está construindo a escadaria?’ e ele responderia: ‘Não.’ A conversa daquele homem não seria apenas tolice?” - “Sim, venerável senhor, a conversa ... apenas tolice.”

38. (Igual ao verso 34)

39. “Potthapada, há essas três aquisições de um eu: [17] o eu grosseiro, o eu feito pela mente, o eu adquirido sem forma. O que é o eu grosseiro? Possui forma, composto dos quatro grandes elementos, alimentado por comida. O que é o eu feito pela mente? Possui forma, completo com todas as suas partes, sem defeito em nenhuma das faculdades. O que é o eu sem forma? Sem forma e feito de percepção.

40. “Eu ensino o Dhamma para o abandono do eu grosseiro, de tal modo que ao praticá-lo, as qualidades mentais impuras sejam abandonadas e as qualidades mentais luminosas se fortaleçam, e você entre e permaneça na culminação e perfeição da sabedoria aqui e agora, tendo realizado e alcançado isso por você mesmo. Se o pensamento lhe ocorrer que quando as qualidades mentais impuras são abandonadas e as qualidades mentais luminosas se fortalecem, e você entrar e permanecer na culminação e perfeição da sabedoria aqui e agora, tendo realizado e alcançado isso por você mesmo, você estará permanecendo com o sofrimento, isso não deve ser visto dessa forma. [18] Quando as qualidades mentais impuras são abandonadas e as qualidades mentais luminosas se fortalecem, e você entra e permanece na culminação e perfeição da sabedoria aqui e agora, tendo realizado e alcançado isso por você mesmo, não há nada além de felicidade, êxtase, tranqüilidade, atenção plena e plena consciência, e uma permanência feliz e prazerosa.

41. “Eu também ensino o Dhamma para o abandono do eu feito pela mente ... (igual ao verso 40).

42. “Eu também ensino o Dhamma para o abandono do eu sem forma ... (igual ao verso 40).

43. “No passado fui perguntado: ‘O que amigo é esse eu grosseiro para cujo abandono você ensina o Dhamma, de tal modo que ao praticá-lo, as qualidades mentais impuras sejam abandonadas e as qualidades mentais luminosas se fortaleçam, e você entre e permaneça na culminação e perfeição da sabedoria aqui e agora, tendo realizado e alcançado isso por você mesmo?’ Sendo perguntado dessa forma, eu respondi: ‘Esse é [19] o eu grosseiro, para cujo abandono ensino o Dhamma ...’”

44. “No passado fui perguntado: ‘O que amigo é esse eu feito pela mente ...?’” (igual ao verso 43).

45. “No passado fui perguntado: ‘O que amigo é esse eu sem forma ...?’ (igual ao verso 43). O que você pensa Potthapada? Esse enunciado não se torna bem fundamentado?” - “Certamente, venerável senhor, esse enunciado se torna bem fundamentado.”

46. “É o mesmo que se um homem construísse uma escadaria para um palácio que estivesse abaixo daquele palácio. As pessoas poderiam lhe perguntar: ‘E agora, essa escadaria que você está construindo para um palácio, você sabe se o palácio estará de frente para o leste, ou oeste, ou norte, ou sul, ou se será alto, baixo ou médio?’ e ele diria: ‘Essa escadaria está exatamente embaixo do palácio.’ Você não pensa que a afirmação desse homem estaria bem fundamentada?” - “Certamente, venerável senhor, essa afirmação estaria bem fundamentada.”

47. “Da mesma forma, no passado fui perguntado: ‘O que é esse eu grosseiro ...?’ ‘O que é esse eu feito pela mente ...?’ ‘O que é esse eu sem forma ...?’ eu respondi: ‘Esse é o eu adquirido (grosseiro, feito pela mente, sem forma) para cujo abandono ensino o Dhamma, de tal modo que ao praticá-lo, as qualidades mentais impuras sejam abandonadas e as qualidades mentais luminosas se fortaleçam, e você entre e permaneça na culminação e perfeição da sabedoria aqui e agora, tendo realizado e alcançado isso por você mesmo.’ Você não pensa que essa afirmação estaria bem fundamentada?” - “Certamente, venerável senhor, essa afirmação estaria bem fundamentada.”

48. Com isso, Citta, o filho do treinador de elefantes, disse ao Abençoado: “Venerável senhor, sempre que o eu grosseiro está presente, seria errado assumir a existência do eu feito pela mente, ou do eu sem forma? Então somente o eu grosseiro é verdadeiro? E assim com o eu feito pela mente e o eu sem forma?”

49. “Citta, sempre que o eu grosseiro está presente, este não é classificado quer seja como um eu feito pela mente nem é classificado como um eu sem forma. É classificado apenas como um eu grosseiro. [20] Sempre que o eu feito pela mente está presente, este não é classificado quer seja como um eu grosseiro nem como um eu sem forma. É classificado apenas como um eu feito pela mente. Sempre que o eu sem forma está presente, este não é classificado quer seja como um eu grosseiro nem como um eu feito pela mente. É classificado apenas como um eu sem forma.

“Citta, suponha que lhe perguntem: ‘Você existiu no passado ou você não existiu, você existirá no futuro ou você não existirá?’ como você responderia?”

“Venerável senhor, se me perguntassem isso, eu responderia: ‘Eu existi no passado, eu não não existi; eu existirei no futuro, eu não não existirei; eu existo agora, eu não não existo.’ Assim, Senhor, seria a minha resposta.”

50. “Mas, Citta, se eles perguntassem: ‘O eu que você tinha no passado, essa foi a sua única aquisição verdadeira de um eu, e a do futuro e a do presente são falsas? Ou é aquela que você terá no futuro a sua única aquisição verdadeira de um eu, e a do passado e a do presente são falsos? Ou o eu adquirido no presente é o único verdadeiro, e as aquisições do passado e do futuro são falsas?’ como você responderia?”

“Venerável senhor, se eles me perguntassem isso, eu responderia: ‘Meu eu adquirido no passado era naquela ocasião a única verdadeira aquisição de um eu, as do futuro e do presente eram falsas. O meu eu adquirido no futuro será então a única verdadeira aquisição de um eu, as do passado e do presente serão falsas. Meu eu adquirido no presente é agora a única verdadeira aquisição de um eu, as do passado e do futuro são falsas.’ Assim é como eu responderia.”

51. “Da mesma forma, Citta, sempre que o eu grosseiro está presente, este não é classificado quer seja como um eu feito pela mente nem é classificado como um eu sem forma ... apenas como um eu sem forma.

52. “Da mesma forma, Citta, da vaca obtemos o leite, do leite a coalhada, da coalhada a manteiga, da manteiga a manteiga clarificada e da manteiga clarificada o creme da manteiga clarificada. E quando há leite, não falamos de coalhada, de manteiga, de manteiga clarificada, de creme da manteiga clarificada, falamos de leite; quando há coalhada, não falamos de manteiga …; quando há creme de manteiga clarificada … falamos de creme de manteiga clarificada.

53. “Assim também, sempre que o eu grosseiro está presente, este não é classificado quer seja como um eu feito pela mente nem é classificado como um eu sem forma. É classificado apenas como um eu grosseiro. Sempre que o eu feito pela mente está presente, este não é classificado quer seja como um eu grosseiro nem como um eu adquirido sem forma. É classificado apenas como um eu feito pela mente. Sempre que o eu sem forma está presente, este não é classificado quer seja como um eu grosseiro nem como um eu feito pela mente. É classificado apenas como um eu sem forma. Mas, Citta, esses são apenas nomes, expressões, modos de linguagem, designações de uso corrente no mundo, que o Tathagata usa sem se agarrar nelas.” [21]

54. Quando isso foi dito, o errante Potthapada disse para o Abençoado: “Magnífico, Mestre Gotama! Magnífico, Mestre Gotama! Mestre Gotama esclareceu o Dhamma de várias formas, como se tivesse colocado em pé o que estava de cabeça para baixo, revelasse o que estava escondido, mostrasse o caminho para alguém que estivesse perdido ou segurasse uma lâmpada no escuro para aqueles que possuem visão pudessem ver as formas. Eu busco refúgio no Mestre Gotama, no Dhamma e na Sangha. Que o Mestre Gotama me aceite como um discípulo leigo que nele buscou refúgio para o resto da vida!”

55. Mas Citta, o filho do treinador de elefantes, disse para o Abençoado: “Magnífico, Mestre Gotama! Magnífico, Mestre Gotama! Mestre Gotama esclareceu o Dhamma de várias formas, como se tivesse colocado em pé o que estava de cabeça para baixo, revelasse o que estava escondido, mostrasse o caminho para alguém que estivesse perdido ou segurasse uma lâmpada no escuro para aqueles que possuem visão pudessem ver as formas. Eu busco refúgio no Mestre Gotama, no Dhamma e na Sangha. Que eu possa receber a admissão na vida santa sob o Mestre Gotama, que eu possa receber a admissão completa!”

56. E Citta, o filho do treinador de elefantes, recebeu a admissão na vida santa sob o Abençoado e a admissão completa. Permanecendo só, isolado, diligente, ardente e decidido, em pouco tempo, o Venerável Citta alcançou e permaneceu no objetivo supremo da vida santa pelo qual membros de um clã deixam a vida em família pela vida santa, tendo conhecido e realizado por si mesmo no aqui e agora. Ele soube: “O nascimento foi destruído, a vida santa foi vivida, o que deveria ser feito foi feito, não há mais vir a ser a nenhum estado.” E assim o Venerável Citta, filho do treinador de elefantes, tornou-se mais um dos Arahants.

 


 

Notas:

Veja o comentário de Ajaan Thanissaro.

[1] A esposa do rei Pasenadi de Kosala. Ela e o rei eram ambos discípulos devotos do Buda. O parque onde o Buda estava havia sido dado pelo conhecido benfeitor Anathapindika. [Retorna]

[2] Abhisaññanirodha. O prefixo abhi não qualifica sañña, mas sim o composto completo, que significa "transe" (sic!). Essa é uma expressão usada, não por Budistas, mas por alguns errantes. [Retorna]

[3] Sañña significa 'percepção' como um dos cinco agregados (khandas). [Retorna]

[4] DA diz que athabbanika ('brâmanes atharva') podem fazer isto. [Retorna]

[5] Sukusala: uma forma intensificada de kusala - 'hábil'. [Retorna]

[7] Viveka-ja-piti-sukha-sukhuma-sacca-sañña: a formulação tradicional para o primeiro jhana mas expandida com as palavras sukhuma-sacca 'verdadeira e refinada'. [Retorna]

[8] A discussão não inclui a base da nem percepção, nem não percepção, porque o tema da discussão é a percepção e tal como indicado no AN IX.36, a base do nada é a realização mais elevada com a percepção. [Retorna]

[9] Saka-saññi-hoti: sentido literal 'se torna dono das percepções'. A partir do primeiro jhana o meditador passa a ter algum controle sobre as próprias percepções. [Retorna]

[10] Veja o MN 140. [Retorna]

[11] Tal como mencionado no AN IX.36, a cessação pode ser alcançada baseada em qualquer um dos jhanas. Portanto, o nível específico no qual a cessação é alcançada pode variar de pessoa para pessoa. [Retorna]

[12] De acordo com DA, a palavra “disso” neste caso se refere à percepção que caracteriza o nível do jhana a partir do qual foi obtido o conhecimento da cessação. [Retorna]

[13] Veja o DN 1.3.11. [Retorna]

[14] Veja o DN 1.3.12. [Retorna]

[15] Veja o DN 1.3.13. De acordo com o DA, esta é a verdadeira opinião de Potthapada. [Retorna]

[16] Esses são os dez avyakatani ou assim chamados indeterminados (ou melhor: 'pontos não declarados') ou questões que o Buda se recusava a responder:

O mundo é eterno ou não?
O mundo é infinito ou não?
A alma (jivam) é o mesmo que o corpo ou não?
O Tathagata após a morte, (a) existe, (b) não existe, (c) ambos, existe e não existe, (d) nem existe, nem não existe?

Todas essas são especulações fúteis, que não conduzem à iluminação e como mencionado em outros suttas, para aquele 'que sabe e que vê' não é adequado que especule sobre esse tipo de coisas: em outras palavras, as questões irão desaparecer por serem insignificantes. As mesmas dez questões são encontradas em várias partes do Cânone, de forma especial no MN 63 (com o conhecido símile do homem ferido por uma flecha que se recusa ser tratado até que tenha obtido as respostas para uma longa série de perguntas) e no MN 72 (o fogo que se extingue); e também existe um capítulo completo no Samyutta Nikaya (44). Pensa-se que estas questões faziam parte de uma espécie de questionário entre os 'errantes' para determinar a posição da pessoa. Isso só seria possível se a palavra Tathagata tivesse um significado pré-Budista, o que pode ser o caso. [Retorna]

[17] Aquisição de um eu (atta-patilaabho): De acordo com DA, isto se refere à aquisição de uma identidade individual (attabhaava-patilaabho) num dos três níveis da existência: o reino da esfera sensual, o reino da esfera da matéria sutil e o reino da esfera imaterial. O termo attabhaava-patilaabho é empregado num número de suttas, entre eles o AN IV.192, onde definitivamente se refere ao tipo de identidade assumida ao renascer num particular nível de existência. No entanto, há duas razões para não seguir a igualização de atta-patilaabho com attabhaava-patilaabho feita pelo DA. (1) O AN IV.72 deixa claro que há um tipo de attabhaava-patilaabho – renascimento no plano da nem percepção, nem não percepção – que não estaria coberto por nenhum dos três tipos de aquisição de um eu mencionados neste sutta. Portanto parece que o Buda está limitando a discussão neste caso às alternativas apresentadas por Potthapada. (2) Numa passagem subseqüente deste sutta, o Buda refere à aquisição do eu como algo que ele é capaz de apontar como parte do âmbito da experiência imediata do seu ouvinte. Portanto esse termo parece se referir à noção de um eu que pode surgir como resultado dos distintos níveis de experiência meditativa aqui e agora. Eu grosseiro se refere ao corpo; o eu feito pela mente se refere à identificação do eu com os agregados que compõem a mente; o eu adquirido sem forma se refere à identificação do eu com as realizações meditativas imateriais ou jhanas imateriais. [Retorna]

[18] Sem dúvida, uma alusão ao fato bem conhecido de que estados elevados tendem a ser vistos como tediosos pela pessoa mundana que ainda não os experimentou. [Retorna]

[19] 'Esse mesmo que você vê'. [Retorna]

[20] Sankham gacchati: sentido literal 'entra em consideração'. [Retorna]

[21] O DA afirma que esta é uma importante referência às duas verdades: 'linguagem convencional' (sammuti-katha) e 'linguagem verdadeira num sentido último' (paramattha-katha). É importante estar consciente do nível de verdade no qual as afirmações são feitas. No MA (MN 5 – nota 1), o seguinte verso é mencionado:

Duas verdades o Buda, melhor entre todos que falam, declarou:
convencional e última - não existe uma terceira.
Os termos consentidos são verdadeiros pelo seu uso no mundo;
palavras com significado último são verdadeiras
em relação aos dhammas. Assim o Abençoado, um Mestre, ele
que tem habilidade com a linguagem deste mundo, pode usá-la, sem mentir.

Comentário de Thanissaro Bhikkhu: tomando o contexto, no entanto, o Buda parece estar se referindo apenas ao fato que ele adota as convenções lingüísticas dos seus interlocutores simplesmente para os fins daquela discussão e estas não devem ser tomadas fora de contexto.[Retorna]

 

 

Revisado: 16 Abril 2013

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